Homenaxe O Escritor na súa Terra 2020: Resposta á laudatio, por Vítor Vaqueiro

A resposta á laudatio pode ser descargada aquí, ou ben ser lida a continuación:

“Depois das generosas (e exageradas) palavras de Xabier Paz fica-me, penso eu, pouco por dizer. Portanto, dedicarei este breve tempo à lembrança de algumas circunstâncias que deitarom como resultado final nos acharmos hoje neste lugar à beira do Sarela, onde há cinquenta anos eu passeava pola Corredoura do Espinho, chamada daquela, se a memória não me atraiçoa, Corredera del Espino, ao pé do meu exagerado louvador, que ao longo de mais de meio século me acompanhou na política, na literatura, no cristão paganismo —por dizê-lo com palavras de Bouza Brey—, no amor polo cinema ou na confidência pessoal e a quem tenho a obriga de agradecer publicamente ter-me resgatado para a poesia, que eu começara a exercitar aos quinze anos, com um soneto amoroso, tão afervoado como abominável, e que abandonara por circunstâncias familiares que não é preciso espalhar.

Afirma Xabier que eu tenho pendor a aquilatar, contar, medir. Se calhar esta tendência quantitativa, real, foi uma das causas, entre outras, da nossa amizade. Um dia do século passado, Xabier, que caminhava ao pé de mim numa de tantas marchas reivindicativas, ao passarmos diante da galeria de Sargadelos desta mesma cidade, laiava-se de não termos levado conta de todas e cada uma das manifestações às que assistíramos mediante a redação duma breve ficha, na que concretizarmos data, motivo da convocatória, condições climáticas, número aproximado de assistentes, intervenção policial, se for o caso, incidências variadas e outras circunstâncias que converteriam esse bloco documental num magnífico registro duma parte das nossas existências. Quero dizer com isso que à hora de quantificar há para todo o mundo.

Alguém poderá perguntar-me —e, com efeito, alguma já o tem feito—porque foi este lugar o escolhido por mim para esteato e não os que apareceriam mais previsíveis na minha conjuntura vital, Salceda de Caselas —a minha pátria da infância, também linguística, convertida em Ferreira do Condado— ou Vigo —onde nasci e vivo—. Para além de circunstâncias que não conviriam aos meus interesses serem conhecidas, direi que na velha Compostela de Gelmírez, Miguel Solís e o mitim das arengas, produziu-se, como já tenho dito, a minha grande inflexão vital. Efetivamente, foi nesta cidade onde olhei de perto aspetos que haveriam mudar aminha vida: a admiração pola pedra sem limites do convento de São Paio de Antealtares, a descoberta das grandes figuras literárias ou políticas, a amizade desinteressada e solidária, o amor, e também o abandono, a presença da morte no antigo cemitério de Bonaval, o terror em noites intermináveis do franquismo, a desmesura etílica, a detenção pola B.P.S., vulgarmente “a social”, a brutalidade dos métodos da ditadura, cujos executores, infelizmente, seguem a passear, desavergonhados, polas nossas cidades, insultando-nos a diário com a sua presença. E, por riba de tudo, os feitos de 1968, um Acontecimento ao que um dia prometi fidelidade e cujos princípios, penso, segui a respeitar até o dia de hoje, porque os acho de justiça e porque não me perdoariam o seu esquecimento Henrique Caruncho Bergantinhos, o meu tio avó brutalmente assassinado polo Horror franquista, e Vítor Foxo, o meu avó, cuja vida, desde que um dia de julho de 1936 na sala de oficiais da Base Naval de Ríos pronunciou a frase “o general Franco é um rebelde” até a sua morte em 1969, a sua vida, dizia, ficou marcada pola angústia e por uma dignidade que o converteu num referente ético para mim. Alguns dos princípios que acabo de sinalar estão analisados literariamente no livro 1968, publicado quando se cumpriam cinquenta anos desta data e do que se recolhem umas breves frases no monólito que há à nossa beira.

Esta cidade ensinou-me igualmente a existência dum país infinito cujo conhecimento principiou aqui, na rua de Pitelos, em Rapa da Folha, na Carreira do Conde, com pequenas excursões iniciais ao Pico Sacro, às torres de Altamira, a Íria Flávia, para se ir alastrando ao barroco de Oseira ou às augas infindas de Fisterra. Aqui nasceu em mim a consciência de que só se ama aquilo que se conhece e, com isso, o desejo de percorrer as terras que vão da Devesa de Rogueira e os tesos cumes do Courel que louvou Novoneyra à marinha sutil de Caldebarcos, onde, assegura-se, moravam homes com luzes no seu peito; da raia seca, na que sobranceia a anta das Maus de Salas, até o estarrecente pre-románico de São Martinho de Mondonhedo. Com o percurso dos anos só precisei aprofundar nesse costume até percorrer e fotografar os (agora) 313 concelhos do país, sem esquecer jamais que foi em Compostela onde iniciei essa imensa viagem à minha terra, que hoje continua porque como dissera Risco, a Galiza é um mundo. Esse mundo, impossível de abranger, doou-se-me com generosidade e às suas paisagens, às suas criações, às suas gentes devo-lhe tudo o que hoje sou. No entanto, eu só lhe di ao país alguns versos, uns poucos relatos, umas fotografias, se quadra certas reflexões sobre a história da sua fotografia. Por isso penso, desde a mais profunda sinceridade, que é o país quem deveria receber esta homenagem, não eu.

Finalizo. Ao longo de décadas, são incontáveis as pessoas que me tenhem emprestado o seu apoio, doado a sua amizade, agasalhado com a sua solidariedade isenta de egoísmo. Algumas delas estão aqui presentes; a outras foi-lhes impossível assistir; outras, desgraçadamente, já não se acham entre nós. Não vou dizer os seus nomes, porque cada uma elas sabe o lugar que ocupa nos meus sentimentos e porque o equívoco e o mal-entendido ficam à espreita sempre, como uma alimária peçonhenta. Mas há um nome que devo sinalar, Merce Caeiro, que, nos últimos trinta e seis anos, precedidos doutros oito de escrupulosa amizade, converteu-se na principal razão da minha vida. Ela, junto com a nação que ambos partilhamos, que constitui um esteio central nas nossas vidas.

Vítor Vaqueiro
Parque de Galeras
Santiago de Compostela, 19 de Setembro de 2020

Vítor Vaqueiro: “A repressão no 68 não era uma cousa branda, senão um dispositivo que se ia avultando na mesma medida que cresciam os movimentos de protesta”

Entrevista de Montse Dopico a Vítor Vaqueiro en Praza:
“(…) – Praza (P): No limiar de 1968, Álvarez Cáccamo ressalta que a principal novidade deste livro, na tua trajetória poética, é o registro da verbalização da intimidade. Concordas com esta idéia? Em que medida?
– Vítor Vaqueiro (VV): Não é fácil, do meu ponto de vista, que um autor, ou autora, opine sobre o seu próprio trabalho e, no meu caso, especialmente. Dito isto, e tentando dar resposta à tua pergunta direi que é possível que Cáccamo tenha razão. Acho que, à hora de julgar a minha poesia, existiu sempre um ponto de vista da crítica —com exceções, como é lógico— segundo a qual a minha escrita poética se caracterizava pola presença do elemento mítico, pola frieza e pola opacidade. Não vou negar que eu faça uma proposta que —para além das suas bondades ou maldades literárias— tem o seu grau de dificuldade. Tudo neste mundo é difícil, lembra-nos J. L. Borges e eu escrevo como escrevo, não sei fazê-lo doutra forma. Mas também penso que essa escrita, na que acredito, colhida no seu conjunto, é, também, profundamente autobiográfica, materialista, no bom sentido do termo, e ancorada no mundo real.
Provavelmente o que acontece em 1968 é que todo o texto, sem exceção, procede da experiência direta vivida. Foi vivido, em primeira pessoa, o acontecimento que para mim supus o processo da universidade naqueles anos, como o foi a guerra do Vietnã, que marcou fortemente uma parte, infelizmente escassa, das pessoas que vivemos essa época, as fotografias, que lembro, do Che Guevara morto, o seu cartaz feito desde uma foto de Alberto Korda, a da miúda vietnamita nua queimada polo napalm, de Nick Ut, a do assassinato dum guerrilheiro Vietcong, de Eddie Adams, o festival de Woodstock cujo filme vi, se mal não lembro, no Salão Teatro, a audição, uma e outra vez, da Shosholoza de Pete Seeger, num piso da rua da Rosa, os graffitis, que ainda tenho fotografados, de Franco del Carro, o medo pessoal, o abandono amoroso, as visitas ao cemitério de Bonaval, a mulher serpente das festas da Ascensão, a música dos Creedence, de John Lee Hooker, de Zeca Afonso e de Quilapayun, escutadas centos de vezes, a feira na carvalheira de Santa Susana, o recital de Voces Ceibes no Capitol e muitas cousas mais. Esse é o material do que está composto 1968, texto que tenta refletir esse caráter, como che dizia, de acontecimento, entendido este termo no seu sentido forte, no de circunstância que interrompe o devir quotidiano, que interrompe a política e gera um novo rumo, uma nova perspectiva das cousas. (…)
– P: O livro tem muito de retrato do Terror, e em geral da violência, da época. Mas de certa forma também se conecta com a atual violência das “democracias” capitalistas. Em que sentido este livro também fala da violência presente?
– VV: Claro, porque a época era violenta e essa violência, bem como o medo que a violência gerava, está refletida, ainda que muitas vezes seja de maneira indireta, através da peneira literária, nas páginas do texto. Não sei se dizer que a violência está inserida no gênero humano até a raiz, mas acredito que qualquer sociedade arranjada em camadas e categorizada em função da classe social à que cada quem pertence, gera inevitavelmente desigualdade. Essa desigualdade gera, pola sua vez, protestos nos setores sociais mais desfavorecidos e nos mais conscientes que, por vezes, não são precisamente os mais desfavorecidos.
O poder, em geral o Estado, que se atribui gratuitamente o monopólio da violência, em troca de reagir escutando esses protestos, analisando o que neles há de justiça, reage com violência, o qual agrava o problema, gera mais frustração e afasta a solução. Neste sentido, as atuais democracias, que eu prefiro chamar “sistemas de liberdades formais”, com “formais” sublinhado, respondem perfeitamente a este esquema, utilizando intermitentemente, quando se precisar, a violência física e de maneira ininterrupta o que poderíamos qualificar, usando a nomenclatura do poder, “violência de baixa intensidade”, concretizada na pressão constante dos “meios de dominação”, não de comunicação, porque o que se diz comunicar, pouco comunicam, limitando-se, em qualquer caso e atendendo à sua própria definição, a porem em circulação o que é comum.
Além da constante construção de “relatos” antidemocráticos, os meios de dominação de massas falsificam a realidade com manipulações, mentiras e após-verdades. Neste sentido a série “A voz mais alta / The loudest voice”, reflete magnificamente, através da análise da figura de Roger Ailes, que foi agressor sexual e diretor de Fox News —cárregos que desenvolvia simultaneamente com grande solvência— o processo posto em marcha pola direita “democrática” norte-americana para se perpetuar no poder e torcer as vontades, como demonstra paradigmaticamente hoje o presidente Donald Trump. (…)”