Afonso Becerra: “A vida e os impulsos criativos e artísticos necessitam um campo sem cancelas”

Entrevista de Montse Dopico a Afonso Becerra en Praza:
“(…) – Praza (P): A hegemonia na arte da palavra é da literatura. Nesta órbita, o teatro fica reduzido a adereço decorativo para ilustrar ou traduzir ao pé da letra, porque é a letra a que manda. Dessa perversa conceção logocêntrica, consciente ou inconscientemente, deriva a dificultade para se abriren caminho as teatralidades pós-dramáticas, afastadas da hierarquia triangular que situa a palavra no cume divino. Começa o livro [Confio-te o meu corpo. A dramaturgia pós-dramática] com reflexões coma esta. Como começa, em geral, o projeto de escrevê-lo?
– Afonso Becerra (AB): Este livro foi uma encarga da Teresa Moure na que, mais ou menos, me pedia que intentasse explicar as claves fundamentais do teatro contemporâneo. Isso que, desde a perspectiva da dramaturgia, chamamos teatro pós-dramático, para diferenciá-lo do modelo compositivo do drama realista de base aristotélica. Não há muitos livros, que não sejam estritamente académicos, dedicados às artes cénicas contemporâneas em geral e na Galiza ainda menos. A ideia, ademais, era fazer um livro de ensaio divulgativo, acessível, que se afastasse dos tecnicismos e formalismos académicos.
Sobre este tema eu tenho refletido muito, tanto na praxe, com algumas das minhas peças, nas que o texto só é um material de composição mais e não ostenta uma hegemonia nem se articula arredor da representação de uma história, por exemplo na peça Crio-Xénese (Laiovento, 2007), ou em peças breves dentro de Textículos dramáticos e posdramáticos (Laiovento, 2013), mas também tenho refletido muito em artigos de análise de espetáculos e, por suposto, nas minhas aulas de Dramaturgia na ESAD de Galiza, onde, ademais de exercícios práticos de análise e composição, acompanho processos de criação.
– P: A dramaturgia pós-dramática não tem necessidade de submeter-se ao império do significado, do tema, do assunto e da história, dizes. Em que se assemelha, então, à poesia?
– AB: Assemelha-se na importância radical da forma, por riba dos conteúdos ou da mensagem, na busca da plasticidade na produção de imagens, na musicalidade com a que se fiam os elementos compositivos, na sua capacidade evocadora, no reforço do nível sensorial, na sinestesia, no seu ímpeto por romper as linguagens comuns e transcender os limites… Também na capacidade de tocar às pessoas emocionalmente sem necessidade de desenvolver um relato nem sujeitar-se à esperança da resolução de uns conflitos, ou seja, sem sujeitar-se à intriga.
– P: De que jeito o pensamento binário e a unidade aristotélica como sinónimo de homogeneidade e equilíbrio podem limitar a nossa recepção do teatro? Por quê dizes que o teatro convencional é apolíneo, pelo contrário das tragédias de Esquilo, que defines como dionisíacas?
– AB: A unidade aristotélica, por si mesma, põe ordem ao caos e corrige moralmente, aí aparece o binário, o bom e o mau, o homem e a mulher, cada cousa no seu lugar, com a sua etiqueta. Mas a vida e os impulsos criativos e artísticos necessitam um campo sem cancelas.
As tragédias de Esquilo narram a história quase sem representa-la senão através de uma espécie de melopeia musical, uma rapsódia lírica, plena de invocações. O pensamento mágico está por cima do pensamento lógico e racionalista. Os estudos ao respeito indicam que aqueles espetáculos eram uma apoteose de dispositivos cénicos de alta plasticidade. (…)”

Afonso Becerra móstranos o teatro posdramático

Desde o Zig-zag da Televisión de Galicia:
“O teatro non é un xénero literario; é unha arte colectiva e colaborativa, na que a palabra e o texto actúan en pé de igualdade cos demáis elementos compositivos da representación escénica. Estas son algunhas das ideas sobre o teatro posdramático que desenvolve no seu ensaio Confio-te o meu corpo o profesor da Escola Superior de Arte Dramática Afonso Becerra. A entrevista pode verse aquí.”

Afonso Becerra de Becerreá: “A dramaturgia é a engenharia do teatro e da dança”

Entrevista de Teresa Moure a Afonso Becerra no Portal Galego da Língua:
“(…) – Portal Galego da Língua (PGL): O teu é um ensaio feroz, no sentido de que conduz quem ler por um território pouco conhecido, mesmo para o público habitual do teatro. Poderias definir o teatro pós-dramático?
– Afonso Becerra (AB): É aquele que afirma o próprio jogo teatral, na sua materialidade e concretização, sem submeter a ação a ideias previas, ao império da palavra ou à representação de uma história.
No teatro pós-dramático a palavra também pode jogar no palco, mas não o faz hierarquizando o resto dos elementos da composição cénica.
O teatro pós-dramático faz primar a sensorialidade, o movimento, o corpo, os objetos cénicos, a luz, os sons, sem estabelecer hierarquias entre os elementos compositivos e sem privilegiar o eixo diacrónico por cima do sincrónico.
– PGL: Tendemos a ver o teatro como um espetáculo, onde alguém (a companhia, quem escreveu a obra ou quem a dirige) decide absolutamente o que encena. Porém não há teatro sem público. Que significa, nesse contexto, Confio-te o meu corpo? Dito noutras palavras, que é que a atriz/o ator aguarda desse coletivo a quem convoca?
– AB: O primeiro que aguarda uma atriz/ator é que a espetadora e o espetador também atuem com eles participando no jogo que o espetáculo propõe. Por tanto, aguardam gerar uma atenção e uma empatia, para entrar num diálogo extraordinário, ou seja, fora do ordinário. Um diálogo empático que nos conecte e nos interpele no que diz respeito a algum aspeto determinado.
Confio-te o meu corpo vem a situar o corpo no centro do discurso, porque é no corpo onde tem lugar a vida e o jogo teatral. As coisas mais importantes sentimo-las no corpo: a paixão, o medo, a vergonha, a alegria… E quando falo do corpo, também o faço a partir de um sentido metafórico, no teatro e na dança, que na perspetiva pós-dramática som a mesma coisa, o corpo e a fisicalidade equivalem à forma dinâmica. O que importa nas artes do palco é o corpo das palavras, o corpo da voz, o corpo dos objetos cénicos, o corpo do movimento… a sua fisicalidade, a sua musculatura e textura. O mais importante sempre acontece no corpo. (…)”