Desde Sermos Galiza, conversa entre Vítor Vaqueiro e Xabier Paz:
“(…) – Vítor Vaqueiro (VV): Se compararmos os dous últimos romances aos que me acabo de me referir, Renacer e As vidas de Nito, vê-se, do meu ponto de vista, um feito importante: o primeiro é, por seguirmos uma convenção clássica, um romance histórico, com alicerces em grande parte documentais, em quanto As vidas de Nito constitui um exercício da memória e da experiência persoal. Valentin, um dos protagonistas d’As vidas de Nito, considera “que se deve escribir primordialmente do que se conhece a fondo”, opinião que eu poderia assinar, ainda que tenha de reconhecer que a minha aversão polo romance histórico tenha um ponto de exageração. Então: qual é a diferença anímica, psíquica —se é que existe— à hora de abordares estes dous romances? Como enfrentaste cada um dos dous processos? Em qual dos dous te sentiste mais cômodo? E, em relação com o anterior, até onde chega o caráter autobiográfico do texto?
– Xabier Paz (XP): Avondas perguntas e nenhuma farrapo de gaita. Talvez estes temas dariam para um seminário de 40 horas. Na minha escrita há um denominador comum: escrevo sobre o que me interessa, sobre o que eu quero conhecer e tamém sobre o que me inquieta —os demônios interiores—. O corolário seria que aspiro a espalhar esse ponhamos “conhecimento” e reflexões, que me parecem de interesse; afinal, um perigoso desejo didático.
Diferenças poucas, ainda que as vidas sejam mais autobiográficas; nas novelas históricas vão também os demônios interiores. Por exemplo, no Renacer as relações de Aretino com a mãe, o papel da família … No meu caso, na medida em que sempre vai algo próprio no texto, no processo da escrita há sempre um momento doloroso, embora também haja outros momentos humorísticos. Cómodo não estou quase nunca. Não sou um artesão que domina as ferramentas e saiba exatamente a cada momento na fase em que está e qual vai ser o resultado de seu trabalho. Enquanto escrevo estou aguilloado pelas dúvidas e a insegurança.
A principal diferença vai no processo, não tanto na escrita. Num caso, nas tramas históricas, dedico muitas horas a documentação. Na preparação é quando mais desfruto. A história de Artemísia, a pintora, cativou-me. Quando escrevi As vidas… , como eu disse, já estava bem documentado, tinha tudo dentro, ainda que a memória seja tão traidora. As vidas de Nito é uma obra na que apanhei muito material autobiográfico, com sucedidos verídicos, mesmo que as diferenças de Casiano e um servidor sejam óbvias. (…)
– VV: Eu achei muito interessante essa atenção pola raridade, representada pola parelha Cham e Eng, ou por Edward Mordake, que merecia chamar-se Edward Mistake, os quais, em resumo, são prolongações de Nito —na infância, um ser raro, ou polo menos visto assim polo Nito adulto—. Resulta interessante a escolha das fichas, muitas com referência à termodinâmica, ou ao evolucionismo, ao clássico The two cultures, de Snow, que já tem meio século e como se fosse ontem. Não é certo que na tua obra —Folhas do bacalhau, Materia de Lucrecio— existe uma reivindicação constante sobre o papel da ciência e sobre a relação entre a ciência e a literatura?
– XP: Sim. Como já disse antes, com alguma arrogância, a minha escrita, em geral, pode ser vista como um exercício a meio caminho entre a antropologia, a filosofia e a política. Eu não acho que existam compartimentos estanques, estâncias incomunicáveis na mente humana. O pensamento no estado de vigília é um. Até mesmo o pensamento mágico não é independente do ambiente cultural em que é produzido. O ser humano tem facetas, ou momentos, como desejarmos, mas a esquizofrenia, a cisão, é uma patologia. O grande erro da escola moderna foi arredar Ciências e Letras como se fossem áreas distantes e mesmo antagónicas. A filosofia, não como lista de biografias, mas como disciplina do correto pensar para bem viver, e a matemática, não como receituário de fórmulas, mas como arte do raciocínio, são muito parenteadas. Eu não entendo como se pode estar abandonando a filosofia no ensino oficial. O utilitarismo grosseiro está fazendo muito dano por fabricar pessoas unidimensionais.
O processo de conhecimento não deve ser entendido de uma única maneira, usando a lógica formal, mas também o sentimento e a intuição. Neste sentido, na minha obra há uma reivindicação, mormente implícita, da ciência. Sem reflexão não há criação e em todo avanço científico há criação e até mesmo poesia, ou seja, um outro modo de ver as coisas. Pensemos na ação dos fermentos ou nas propriedades dos raios X. Se não há poesia neles não sei onde estará. (…)”