Entrevista a Carlos Quiroga

EntrevistaCarlos Quiroga a Carlos Quiroga no Grupo Surrealista Galego:
“(…) – Grupo Surrealista Galego (GSG): Que é para ti, hoje, o surrealismo (ou surrealismos)?
– Carlos Quiroga (CQ): Creio que em primeiro lugar me afastaria do significado de extravagante ou bizarro, do histriónico, que às vezes circula na linguagem corrente, quando se fala em Surrealismo, ainda que assuma encantado o certo sentido de insensatez que comporta o conceito. E depois, como para o comum dos mortais que mexem ou catam no que tenha a ver com Letras ou Arte, o Surrealismo é para mim, antes de mais, uma categoria singular da História das Letras e da Arte em geral. Mas o seu diferencial está em que para além da pertinência contextual em origem continua e continuará perdurável. Para mim o Surrealismo (ou Surrealismos) ainda é vigente, utilizável, e ainda representa perfeitamente um posicionamento a-temporal de abordagem do sentido do mundo e da vida. O entendimento da sua categoria histórica pertence mais ao ponto de vista do curioso, explicador ou professor ou o que se queira chamar de consumidor e observador passivo da produção humana na vertente chamada estética. O entendimento da sua vigência pertence mais ao ponto de vista do necessitado ou impelido para o seu uso como instrumento ainda vigente na produção dentro dessa mesma vertente, para a criação. Porque o Surrealismo é jovem, o Surrealismo é inteligente, o Surrealismo é criativo –um Surrealismo que é ainda hoje à Literatura e à Arte o que apesar de tudo é rádio-3 às outras rádios!
Na Literatura e na Arte também vale a pena reciclar, de maneira que categorias singulares da sua História, como a de Surrealismo, parecem-me altamente oportunas. Nem acredito na provocação e deslumbramento de novas etiquetas nem creio na oportunidade de fingir ao presente estarmos na vanguarda –do palavreado bélico que sugere enfrentamento e portanto um único final possível: extinção própria ou do pretenso inimigo que se imagina diante. Vanguarda o quê, vanguarda significa moda, uso descartável…? Procurar a vanguarda mal pode permitir hoje, à velocidade que o planeta vai, um entendimento profundo do que temos em volta. O Surrealismo já nasceu numa consciência pós-vanguarda, lúcido de uma perenidade ampla que olhava de outro modo para o mundo. E o uso novo ou renovado de ‘categorias antigas’ ou etiquetas testadas como esta pode fornecer capacidades superiores. Em Literatura e Arte, como no consumo de recursos da natureza, também se pode praticar um decrescimento sustentado que aproveite e explique melhor o que existe. Porque é preciso decelerar para entender. E na deceleração o Surrealismo (ou Surrealismos) permite fazer isso acelerando, maravilhosamente.
Por quê Surrealismo em particular, por quê essa etiqueta e não outra? Porque é mais completa. Porque é mais certeira. Porque pode ser filosófica, mística, interventiva, local e universal, tanto como Saudosismo, mais que Sensacionismo. No Cubismo, ou no Futurismo, Expressionismo, Dadaísmo, etc., ao igual que no Surrealismo, juntamente com a sincera procura de novos rumos e novas significações para a expressão da alma humana, já havia uma relativa dose de insinceridade ou mistificação, que também poderiam dar jogo, e interessam-me, mas permitem um jogo reduzido, caduco, datado. Até a categoria Simbolismo, que me parece altamente interessante por motivos parecidos aos que estou comentando, que até é mais antiga e nalgum sentido até mais em sintonia com uma ambição de entendimento pessoal menor, fica no entanto pequena. A Humanidade foi mergulhando na procura do seu entendimento louco debatendo-se entre duas tendências, a da perplexidade em adaptar-se ao Real e a da perplexidade de tender para o Possível. O Surrealismo (ou Surrealismos) permitem traduzir maravilhosamente essa dupla procura de entendimento, seja como observadores ou explicadores curiosos, seja particularmente como criadores ou desassossegados seres humanos perplexos por causa do Real e do que lhe está por trás. Falar de Surrealismo (ou Surrealismos) permite hoje melhor do que doutros modos considerar o Real e tender para o Possível, sendo algo insensatos como criadores por causa disto último mas mostrando inconformismo por causa do primeiro.
– GSG: Em que te sentes vinculad@ ao surrealismo (e que referentes seus consideras mais destacáveis para ti)? Que experiências tens…?
– CG: Sinto-me só algo vinculado ao surrealismo por sentir-me desconforme com o real, por tender para o possível, por procurar mecanismos ou posições ou produções às vezes insensatas ainda que a timidez não me permita um grau de provocação notável para mudar o real. Por isso me sinto só algo surrealista. Surrealista tímido. Mas se sou socialmente bem comportado, se tenho um trabalho formal, se me adapto, é porque também sei que para a eficiência sobre esse real desconforme não se pode ser pletoricamente surrealista, ou logo és tomado por louco. Tomado por pirado, excessivo, extravagante, que é a visão comum dos outros sobre quem vai a todo volume de tal. Portanto vou pouco de surrealista mas escondo cromossomas de surrealistas no núcleo celular do que penso, escrevo, desenho, filmo, esculpo, faço com as mãos.
Referentes? Surrealismo é uma atitude de entendimento e encarna de modo diferente e com diversos graus nas individualidades. O Mário Cesariny de Vasconcelos passou-me humanamente perto e poderia citá-lo como referente, mas ele era demasiado ousado para alguém tão pacato como eu tê-lo como referente. E depois há surrealismo fora do Surrealismo. E, enfim, que não saberia ser bem concreto, distinguir entre o lido ou visto de fora e o vivido ou sentido por dentro, ligar uma cousa e a outra para achar espelho ou referência. E quanto a enumerar o vivido ou sentido por dentro, as experiências que tenham a ver com surrealismo, parece-me um exercício difícil e pesado: experiências dentro do surrealismo como atitude de entendimento tenho e aplico constantemente, nas aulas, quando escrevo, quando fico calado, e até neste mesmo instante em que procuro uma contenção para fazer-me entender porque entendo que é disso que se trata; experiências próximas do Surrealismo como categoria interventiva, poucas, porque se precisa companhia e sou pouco gregário. Mas já que falamos nisto, referentes e experiências, talvez a da proximidade com o Mário possa valer a pena partilhar com quem por isto se interessa (vou acompanhar um texto já publicado em Portugal que o recorda): “O meu Cesariny ao humano em mito”, in Correntes d’Escritas, Revista de Cultura Literária da Póvoa de Varzim, nº 5, Fevereiro 2006, pp. 66-68. (Variante aqui). (…)”