Entrevista a Teresa Moure no Portal Galego da Língua:
“(…) – Portal Galego da Língua (PGL): Não é habitual a génese da história ser parte da própria história. Porque este recurso em Ostrácia?
– Teresa Moure (TM): A cápsula do romance histórico está superada, acho. Que alguém sente a escrever sobre a vida e milagres de gentes do passado, embora calme a angústia do presente, tem um ar hagiográfico perigoso. Cada ano publicam-se centos de romances históricos que se, ademais, versam sobre mulheres apagadas da história, têm o público assegurado. Mas essa revisão pode ser mesmo reacionária; serve para deslocar-nos do presente, que é o que temos a obrigação ética de mudar. Por isso, à hora de escrever sobre personagens «reais», e com alto valor simbólico, pensei que havia que romper o subgénero do romance histórico e deixar entrar as dúvidas de quem se está a documentar. Como há muita incerteza e falta de concordância entre as biografias de Inessa Armand e de Lenine, como é impossível, aliás, saber o que realmente aconteceu na sua intimidade, uma maneira de evitar que o romance exigisse uma erudita leitura historiográfica era introduzir no relato os próprios problemas que teria uma autora à hora de empreender o seu trabalho. Isso evita a ótica omnisciente e concede profundidade ao assunto da receção, porque eu sabia que um romance sobre leninismo afastaria muit@s hipotétic@s leitor@s da Ostrácia. O leninismo não é amável. Uma autora que abandona a literatura oficial para se situar nas margens também não é. Sabendo que Ostrácia ia ser recebida e interpretada nesse contexto, pensei que estava obrigada a ter a coragem de contar tudo isso. E introduzi uma personagem parcialmente autobiográfica –em parte um piscar de olhos a quem conhece a autora– para assim situar-me à mesma altura de Lenine e Armand. Se eu ia farejar na sua intimidade, o qual é delicado, exibir umas supostas vulnerabilidades minhas era o único exercício eticamente coerente.
– PGL: Ostrácia é um «ajuste de contas» com a história que apaga ou, no mínimo, assombra a figura de Inessa Armand, mas também ajusta outras dívidas…
– TM: Sempre que um ser humano é interpretado como personagem, por intranscendente que for essa condição de personagem, passa por uma etiquetagem. As etiquetagens são preconceitos e, portanto, negativas. É bastante evidente que a Inessa Armand, com um pouco que se pesquise sobre ela, era uma mulher adiantada ao seu tempo. Após ter casado com um homem de certa posição social e ter quatro filhos com ele, após ter fundado algumas sociedades protofeministas, um dia deixa que a casa vá pelo ar simplesmente porque namora… do seu cunhado, treze anos mais jovem do que ela. E vai embora com ele, mantendo os filhos e filhas consigo e conservando sempre uma magnífica amizade e cumplicidade com quem fora o seu marido. Mas torna-se numa mulher de péssima reputação, ao conviver com Volódia, numa relação que se manterá até a morte dele. Nessa época entra a fazer parte do partido Social-Democrata e tem uma atividade política de escassa intensidade, do ponto de vista revolucionário –na sua casa imprimia-se propaganda marxista e organizavam-se reuniões anti-czaristas, não muito mais–. Porém, isto é suficiente para a Okhrana, a polícia czarista, a enviar quatro anos para Mezem, como desterrada, como presa política. Só depois de todos estes episódios é que conhece Lenine e inicia essa relação que se narra em Ostrácia. Embora desempenhe importantes cargos na cúpula bolchevique e no governo revolucionário, Inessa Armand apenas vai ser conhecida, e pouco, como «a amante de Lenine». Não se trata, então, de que eu pretendesse fazer uma leitura em chave feminista, onde se revisasse a sua importância na história da revolução russa; a sua condição de deliberadamente esquecida está fora de dúvida. Foi apagada conscientemente no período estalinista para não sujar a imagem de Lenine. Mas ao narrar e atrever-me a romper a cápsula do género de que falávamos antes, saíam algumas conexões engraçadas entre a Inessa e eu, biográficas e psicológicas, e eu notava essa identificação. Inessa teria desejado uma segunda oportunidade, teria desejado, acho, que não só lhe correspondesse fazer os trabalhos sujos da política, e também que Lenine rompesse com a Nádia por ela. E a autora inevitavelmente via-se obrigada, à medida que reconstruia o relato histórico, a pensar em si própria como autora que estava a dar uma segunda oportunidade ao romance histórico com protagonista feminino e tinha, para ser tão coerente como a Inessa, que explicar a sua posição frente a algum texto que escrevera, de que não renegava em absoluto, mas que fora incorretamente etiquetado como «narrativa histórica feminina».
Eu escrevi Herba Moura e continuo a identificar-me com esse texto. Mas também tenho que enfrentar a realidade: nunca me será permitido nesta sociedade escrever outro texto que seja considerado «tão bom como» Herba Moura. Por ser reintegracionista, evidentemente, percebo como o que escrevo agora tem muitas mais dificuldades para se abrir passagem. Agora a minha escrita pertence a uma dissidência política que já tem nome. Está bem: era algo que assumi quando decidi vir para o lado escuro das normativas ortográficas. Não posso concorrer a prémios porque cometo o delito de escrever com «nh», que é um delito coletivo de todo o reintegracionismo, mas no meu caso tem o agravante de ter renunciado a uma certa consideração oficial. Não é assim tão fácil agora ser traduzida nem participar dos saraus da cultura, embora também não estou a chorar: o movimento reintegracionista há de conseguir a sua visibilidade em pouco tempo. Mas provavelmente sucederia igual se não tivesse dado esse passo. Para além de Herba Moura, publiquei outras 20 obras, por isso é estranho para mim quando chego a um sítio e sou mencionada como a autora desse romance, como se o texto me tivesse devorado… É que todo o pessoal gosta de romances histórico-feministas? Estranho! Outros textos mais elaborados, traduzidos também a outras línguas, não são mencionados nunca. Não gosto, por recato, de expor este tipo de dados mas é possível que o reintegracionismo precise fazer análises detalhadas e agora que o Mário Herrero está a ser tão valente, vou tentar apoiar a sua reivindicação sem falso pudor. Sou a autora de Herba Moura, mesmo se publiquei em todos os géneros literários, se me dediquei por duas vezes a um género tão pouco tratado por autoras femininas como o teatro, se uma obra de teatro minha para além de vários prémios, conseguiu ter toda uma temporada de representações continuadas em muitas vilas galegas a cargo duma companhia prestigiosa como Teatro do Atlántico ou se escrevi seis ensaios, dois deles ganhadores do único prémio de ensaio em galego. Se esse apagamento do resto do que estou a escrever fosse por um assunto de qualidade, ficaria descansada. Mas é que Herba Moura gostou porque recebeu uma leitura domesticada, como se fosse politicamente correto aceitar alguma vez um romance alternativo em chave moderadamente feminista, quando a meu ver as distintas edições, não necessariamente a de Xerais, foram acusando uma castração que pode comprovar-se no desenho da capa, no título ou na mutilação parcial do texto nas diferentes traduções; algo que a crítica, superficial, contribuiu a acrescentar. Havia razões para revistar o meu ponto de vista que alerta contra as censuras do nosso sistema literário e contra as suas manipulações. Finalmente, tentar que seja aceite o próprio ponto de vista é uma tática leninista. Há uns dias saiu uma crítica de Ostrácia onde o caro Mário Regueira declarava que eu tentava impor a minha leitura sobre a tensão da receção. Era atinado. Mas surpreendia-me que Regueira não advertisse o jogo: se escreves sobre Leninismo, tens que procurar essa hegemonia: erradicar os mencheviques. Não ficava outra possibilidade; fazia parte do projeto como jogo literário. (…)”