Vítor Vaqueiro: “A repressão no 68 não era uma cousa branda, senão um dispositivo que se ia avultando na mesma medida que cresciam os movimentos de protesta”

Entrevista de Montse Dopico a Vítor Vaqueiro en Praza:
“(…) – Praza (P): No limiar de 1968, Álvarez Cáccamo ressalta que a principal novidade deste livro, na tua trajetória poética, é o registro da verbalização da intimidade. Concordas com esta idéia? Em que medida?
– Vítor Vaqueiro (VV): Não é fácil, do meu ponto de vista, que um autor, ou autora, opine sobre o seu próprio trabalho e, no meu caso, especialmente. Dito isto, e tentando dar resposta à tua pergunta direi que é possível que Cáccamo tenha razão. Acho que, à hora de julgar a minha poesia, existiu sempre um ponto de vista da crítica —com exceções, como é lógico— segundo a qual a minha escrita poética se caracterizava pola presença do elemento mítico, pola frieza e pola opacidade. Não vou negar que eu faça uma proposta que —para além das suas bondades ou maldades literárias— tem o seu grau de dificuldade. Tudo neste mundo é difícil, lembra-nos J. L. Borges e eu escrevo como escrevo, não sei fazê-lo doutra forma. Mas também penso que essa escrita, na que acredito, colhida no seu conjunto, é, também, profundamente autobiográfica, materialista, no bom sentido do termo, e ancorada no mundo real.
Provavelmente o que acontece em 1968 é que todo o texto, sem exceção, procede da experiência direta vivida. Foi vivido, em primeira pessoa, o acontecimento que para mim supus o processo da universidade naqueles anos, como o foi a guerra do Vietnã, que marcou fortemente uma parte, infelizmente escassa, das pessoas que vivemos essa época, as fotografias, que lembro, do Che Guevara morto, o seu cartaz feito desde uma foto de Alberto Korda, a da miúda vietnamita nua queimada polo napalm, de Nick Ut, a do assassinato dum guerrilheiro Vietcong, de Eddie Adams, o festival de Woodstock cujo filme vi, se mal não lembro, no Salão Teatro, a audição, uma e outra vez, da Shosholoza de Pete Seeger, num piso da rua da Rosa, os graffitis, que ainda tenho fotografados, de Franco del Carro, o medo pessoal, o abandono amoroso, as visitas ao cemitério de Bonaval, a mulher serpente das festas da Ascensão, a música dos Creedence, de John Lee Hooker, de Zeca Afonso e de Quilapayun, escutadas centos de vezes, a feira na carvalheira de Santa Susana, o recital de Voces Ceibes no Capitol e muitas cousas mais. Esse é o material do que está composto 1968, texto que tenta refletir esse caráter, como che dizia, de acontecimento, entendido este termo no seu sentido forte, no de circunstância que interrompe o devir quotidiano, que interrompe a política e gera um novo rumo, uma nova perspectiva das cousas. (…)
– P: O livro tem muito de retrato do Terror, e em geral da violência, da época. Mas de certa forma também se conecta com a atual violência das “democracias” capitalistas. Em que sentido este livro também fala da violência presente?
– VV: Claro, porque a época era violenta e essa violência, bem como o medo que a violência gerava, está refletida, ainda que muitas vezes seja de maneira indireta, através da peneira literária, nas páginas do texto. Não sei se dizer que a violência está inserida no gênero humano até a raiz, mas acredito que qualquer sociedade arranjada em camadas e categorizada em função da classe social à que cada quem pertence, gera inevitavelmente desigualdade. Essa desigualdade gera, pola sua vez, protestos nos setores sociais mais desfavorecidos e nos mais conscientes que, por vezes, não são precisamente os mais desfavorecidos.
O poder, em geral o Estado, que se atribui gratuitamente o monopólio da violência, em troca de reagir escutando esses protestos, analisando o que neles há de justiça, reage com violência, o qual agrava o problema, gera mais frustração e afasta a solução. Neste sentido, as atuais democracias, que eu prefiro chamar “sistemas de liberdades formais”, com “formais” sublinhado, respondem perfeitamente a este esquema, utilizando intermitentemente, quando se precisar, a violência física e de maneira ininterrupta o que poderíamos qualificar, usando a nomenclatura do poder, “violência de baixa intensidade”, concretizada na pressão constante dos “meios de dominação”, não de comunicação, porque o que se diz comunicar, pouco comunicam, limitando-se, em qualquer caso e atendendo à sua própria definição, a porem em circulação o que é comum.
Além da constante construção de “relatos” antidemocráticos, os meios de dominação de massas falsificam a realidade com manipulações, mentiras e após-verdades. Neste sentido a série “A voz mais alta / The loudest voice”, reflete magnificamente, através da análise da figura de Roger Ailes, que foi agressor sexual e diretor de Fox News —cárregos que desenvolvia simultaneamente com grande solvência— o processo posto em marcha pola direita “democrática” norte-americana para se perpetuar no poder e torcer as vontades, como demonstra paradigmaticamente hoje o presidente Donald Trump. (…)”