Entrevista de Daniel Amarelo a Afonso Becerra no Portal Galego da Língua:
“(…) – Portal Galego da Língua (PGL): Existem várias histórias da literatura, mesmo contamos com várias publicações sobre a história do teatro galego, mas tivemos que esperar até 2021 para poder usufruir de uma história da dança na Galiza. Quais foram as tuas principais motivações para escrever esta obra [História da Dança Contemporânea na Galiza] e aumentá-la progressivamente? Que nos oferece o livro ao público leitor e à cultura galega atual em geral, neste momento de crise social, cultural e económica?
– Afonso Becerra (AB): A primeira motivação é de natureza amorosa e afetiva, relativa à atração que de sempre suscitam em mim as artes do movimento e a dança. O facto de situar o corpo como sujeito e, ao mesmo tempo, objeto artístico, com todas as suas camadas de mistério e significação sensual. O jogo que a dança nos propõe através do movimento do corpo, até na sua quietude, e o desafio que coloca para quem tenta descrever, analisar ou contar a dança. Esta foi a minha primeira motivação que me levou a escrever sobre peças de dança desde há uns vinte anos.
A segunda motivação foi quando Carmen Giménez Morte, professora do Conservatório Superior de Dança de Valência, pertencente à Academia das Artes Cénicas de Espanha, decidiu, com o respaldo da Academia, publicar a primeira história da dança contemporânea da Espanha. Ela ligou para mim para pedir-me que me ocupasse dos capítulos sobre a Galiza. Esses capítulos são necessariamente breves por estarem inseridos em volumes que atendem a todas as comunidades autónomas do Estado. Além disso, também estabelecem uma espécie de hierarquia, segundo a qual Madrid, Catalunha e Valência têm mais peso e maior extensão em páginas. Ora, quando eu comecei a pesquisar, descobri que havia toda uma imensa e rica história da dança oculta e totalmente desconhecida na Galiza. Descobri que a história da dança na Galiza não é de menor nível do que a história da dança noutros lugares, apesar de um contexto muito mais adverso do que noutros lugares como a Catalunha ou Madrid. Portanto, a constatação desta injustiça fez que redobrasse os esforços para levar adiante este livro, para visibilizar uma das manifestações artísticas fundamentais da cultura de qualquer país, que no nosso estava discriminada.
Relativamente ao que oferece este livro ao público leitor e à cultura galega em geral, neste momento, há vários aspetos. Se calhar, o primeiro é a consciência de que temos uma arte que não pode continuar a ser desconhecida para qualquer pessoa que se considere culta. A consciência de que não existe uma cultura plena sem a atenção ao “discurso” dos corpos, à arte da dança.
Esta é a primeira história da dança da Galiza, portanto, o livro tenta oferecer um relato-mapa do nascimento e eclosão da dança contemporânea (aquela na qual a criação de movimento é maior) sem estabelecer hierarquias. Tentei que todas as coreógrafas e coreógrafos estivessem. Também tentei que não fosse um livro só de informação e dados, mas também sobre a arte da dança, os estilos e as questões que pode levantar.
Neste momento de crise, a história da dança na Galiza, ensina-nos a resistir e a que não há sonhos que não possam ser cumpridos, se o amor e o empenho estiverem à sua altura.
– PGL: Em que estado se acha a dança feita na Galiza atualmente? Como se costuma dizer, “qualquer tempo passado foi melhor”, ou, contrariamente, fomos aprendendo dos erros e episódios do passado?
– PGL: Na dança galega há meio cento de criadoras/es, sobretudo mulheres. Há uma grande diversidade de estilos e tendências. Começam a conviver coreógrafas de diferentes gerações, desde Amparo Martínez Paz, que foi a primeira selecionada para o primeiro Certame Coreográfico de Madrid (se calhar o festival mais significativo do Estado) em inícios dos anos 80, até Xián Martínez Miguel, um coreógrafo de 24 anos, que acabou em 2020 no Conservatório Superior de Dança de Madrid (na Galiza não temos Conservatório Superior de Dança). Como me comentava Matias Daporta, também coreógrafo, na Galiza podem observar-se duas grandes tendências no contemporâneo, por um lado um estilo mais conceitual focado no próprio movimento, como podem ser as peças do Coletivo Glovo de Lugo, formado por Ester Latorre e Hugo Pereira, e, por outro lado, a dança mais acrobática e circense, que liga esta arte com os aéreos, da qual o exemplo mais claro é o Coletivo Verticália, formado por Paula Quintas, Marta Alonso Tejada e Raquel Oitavén. Mas eu também acrescentaria uma outra linha sinuosa de dança-teatro, na qual se inscrevem a maior parte das criadoras e criadores. E ainda uma quarta linha de atualização e releitura contemporânea do tradicional. Eis os trabalhos de Nova Galega de Dança (o mais recente, intitulado Leira, é a imagem da capa do livro) ou os de uma companhia muito mais recente e que não sai no livro, mas que também devemos considerar, como é a de Fran Sieira, além do importante labor nesse campo por parte da companhia de Quique Peón.
Além da questão artística, muito diversa e rica em propostas e estilos muito singulares, a dança continua numa situação económica muito precária (relativamente às ajudas públicas e privadas e à programação nos teatros). Trata-se, dentro das artes cénicas, da mais marginada na Galiza. (…)”
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Pilar García Negro: “O expediente grave que temos entre mans é, como afirmava Ricardo Carvalho Calero, conseguir o uso do galego para tudo”
Entrevista a Pilar García Negro no Portal Galego da Língua:
“(…) – Portal Galego da Língua (PGL): Qual foi a melhor iniciativa nestes quarenta anos para melhorar o status do galego?
– Pilar García Negro (PGN): Permitam-me, antes de mais, umha pontualizaçom: nom é adequado falarmos de “oficialidade” do galego e, portanto, do 40º aniversário da mesma. Tal efeméride, neste 2021, leva-nos à promulgaçom de umha lei orgânica espanhola, o “Estatuto de Autonomia da Galiza” (Abril 1981), dependente, a fortiori, da Constituiçom aprovada e promulgada em 1978. O que em ambos textos legais se permite é um regime de cooficialidade. A tal cooficialidade (verbal, terminológica) nem sequer é real, quer na sua modalidade territorial, quer como direito pessoal. E nom existe, como exercício possível, porque a supremacia da língua oficial do Estado, o espanhol, elimina de raiz qualquer possibilidade de igualdade ou de equiparaçom legal.
As melhores iniciativas (em plural) para melhorarem o status do galego nascerom (des)de abaixo, quer dizer, do mesmo povo galego organizado em diferentes porçons políticas, sindicais ou associativas. Reluzem de jeito singular a atividade, propostas, denúncias de incumprimento de mínimos legais e relaçons internacionais, da Mesa pola Normalización Lingüística. O grande paradoxo-drama é que levamos décadas acumuladas dumha actuaçom governamental-“juntística” que agita com frequência o cocktail da passividade-indiferença-hostilidade-agressom no tratamento sociopolítico da língua galega, com particular ênfase negativa na última década, onde se chegou a conceituar o galego como “barreira” ou a proibi-lo, diretamente, em várias disciplinas do temário escolar.
– PGL: Se pudesses recuar no tempo, que mudarias para que a situaçom na atualidade fosse melhor?
– PGN: Várias cousas. A principal: a utilizaçom da cativa (no duplo sentido) legislaçom e competências autonómicas a prol do galego, para o fazer mais visível e audível socialmente; para ir conquistando e consolidando espaços de uso público; para lhe procurar asociaçons novas e rupturistas; para soldar sentimentos de galeguidade tradicional com pensamentos e atos de galeguidade consciente. Também mudaria táticas de sociopedagogia, que, se calhar, utilizamos com a melhor intençom mas sem a devida inteligência. E, por suposto, encareceria muito mais a necessidade dumha nova didática no ensino da língua, no ensino em geral, e na procura de usos nom redundantes ou consabidos (literatura, efemérides…). (…)”
Isaac Alonso Estraviz: “Díaz Pardo afirmou infinidade de vezes que galego e português eram a mesma língua”
Entrevista a Isaac Alonso Estraviz no Portal Galego da Língua:
“(…) – Portal Galego da Língua (PGL): Esse livro [Isaac Díaz Pardo e a Língua] foi em grande medida uma cousa tua. A sua gestão começou a fins do 2007. De quando vem a tua amizade com Diaz Pardo?
– Isaac Alonso Estraviz (IAE): O meu primeiro encontro com Isaac Diaz Pardo foi no ano 1960 ao adquirir em Buenos Aires o seu livro Midas. O ángulo de pedra (1957) que depois iria comigo a França, Sória, Alemanha, Navarra, Albacete…. Pessoalmente conheci-o em 1970 na Galeria Sargadelos de Madrid. Foi um encontro gratificante com uma pessoa inteligente, amável, respeitosa com todos. Surgiu entre ambos um carinho e uma admiração mútua. Depois foi em O Castro, Sargadelos e no Instituto de Información bastantes vezes. E várias em Santa Marinha de Águas Santas. Mesmo nos publicou em Edicions do Castro vários livros sobre o relacionamento entre galegos e portugueses. Não se atreveu com o Dicionário Galego polo voluminoso que era e porque supunha muito dinheiro que ele tinha medo em fracassar. Teve uma enorme alegria ao ver que a obra saíra a lume.
– PGL: Díaz Pardo pertencia a tradição galeguista na que se formara nos anos 30 do século passado, para a qual galego é português era a mesma língua.
– IAE: Que galego e português eram a mesma língua afirmou-o infinidade de vezes, como se pode comprovar no livro homenagem que lhe fez a AGAL e do qual eu fui o coordenador. Pode atualmente consultar-se na publicação digital também disponível no PGL. Esse livro consta de uma primeira parte na que intervêm: José Maria Casariego Guerreiro, Isaac Alonso Estraviz, José Paz Rodríguez, Alexandre Banhos (naquela altura Presidente da AGAL) e José-Martinho Montero Santalha. E uma segunda, com trabalhos dele sobre a língua galega e a sua unidade com a variante portuguesa.
– PGL: Isso não era incompatível com escrever à castelhana, infelizmente a única forma que se conhecia.
– IAE: Escrevia-se à castelhana na tradição galeguista que afirmava a unidade da língua, porque era o único jeito que se sabia escrever, diria mais o único que aliás podia se conhecer, mas existia a vontade de mudar as cousas, que o franquismo e a sua eficaz guerra e ditadura decepou. Castelão o expressou muito bem, ao dizer que aspirava a que o galego se confundisse com o português. Diaz Pardo sempre defendeu a unidade, um bom exemplo é o seu livro em castelhano em Ruedo Ibérico, Galicia Hoy, uma pequena maravilha que destinava a todos, tendo em conta os destinatários e a finalidade que se propunha. (…)”
“Propostas conjuntas da AGAL e a Xunta para o ano Carvalho Calero 2020”
Desde o Portal Galego da Língua:
“Na manhá do dia 14 de maio, derom-se a conhecer em conferência de imprensa as propostas do convénio entra a AGAL e o governo galego, nomeadamente através da Dirección Xeral de Políticas Culturais e pola Secretaría Xeral de Política Lingüística para a celebraçom do ano Carvalho Calero. Na linha de funcionamento habitual, o trabalho institucional para a homenagem do Dia das Letras Galegas fai-se em coordenaçom com umha instituçom ou familiar representante da pessoa homenageada, que para o caso de Ricardo Carvalho Calero, foi a AGAL.
No ato, guiado pola diretora deste meio, Charo Lopes, participarom Eduardo Maragoto, presidente da AGAL; Anxo Lorenzo, Director Xeral de Políticas Culturais da Xunta da Galiza; José Manuel Aldea, director de Ouvirmos, -empresa encarregada da exposiçom monográfica sobre Carvalho- e Valentín García, Secretario Xeral de Política Lingüística. Desculpou a sua ausencia por problemas técnicos Víctor Freixanes, presidente da Real Academia Galega.
Eduardo Maragoto começou agradecendo a disponibilidade para o trabalho comum: “Este convénio é um marco no relacionamento entre as pessoas que desejamos o melhor para a nossa língua, e nom há mada melhor para celebrar neste ano Carvalho Calero. E nesta fisolofia é que estám pensadas as atividades.” Para conseguir esta confluência Maragoto salientou o esforçom ativo em “abster-se de reinterpretar Carvalho desde posiçons de parte atuais: o que ides encontrar é um Carvalho que se explica a si mesmo desde os seus próprios textos”. Para o presidente da AGAL, as atividades estám pensadas para unir à cidadania en torno da figura de Carvalho, tanto na exposiçom, A Voz Presente, no documentário De Carballo a Carvalho, como nas seis unidades didáticas lançadas para o ensino. Por outra parte, fixo fincapé nos três eventos que ficarom adiados por causa da crise sanitária, o concurso literário Scórpio, o concurso musical “musicando a Carvalho Calero” e a leitura continuada de Scórpio. Fechou a sua intervençom fazendo um repasso virtual polos recursos da web carvalho2020.org que definiu como umha das melhores webs das pessoas homenageadas na história do dia das Letras.
Anxo Lorenzo, Director Xeral de Políticas Culturais da Xunta da Galiza, celebrou “poder apresentar com a AGAL a exposiçom itinerante, que de momento, se adianta em formato digital”. E ainda lamentando as dificulades do momento devido à crise do coronavirus, sinalou que: “A insuficiência deste momento, tem a fortaleza de fazer de Carvalho Calero 2020 o ano das letras galegas mais digital até hoje na história das letras galegas”. Esta condiçom, é para o Director Xeral de Políticas Culturais: “fazer da necessidade virtude, mais vai converter a Carvalho em pioneiro da necessária transformaçom digital”. Por outra parte, afirmou que “todas as atividades físicas serám reprogramadas a medida que as condiçons sanitárias e as restriçons públicas vaiam relaxando-se.” Também parabenizou os comisários da exposiçom: “pola condensaçom de conteúdos e por dar essa reflexom sobre a vida, obra e os aspectos fundamentais que Carvalho Calero aportou ao ámbito académico, de divulgaçom, linguístico, literário e também no debate sobre a normativa e qual deve ser a forma culta do galego”.
José Manuel Aldea, responsável de Ouvirmos, a empresa encarregada da produçom da exposiçom interviu para falar mais polo miúdo os detalhes de A voz presente que descreveu como “transparente”, por ter como ponto de partida a intençom de “dar-lhe voz ao próprio Carvalho, nom apenas através dos seus textos, mas também acompanhado com vídeos e audios”, destacando que “é a primeira vez que temos imagem e audio de calidade do homenageado”. E deu protagonismo neste logro ao labor dos comisários, “José Luís Rodríguez e Carlos Quiroga, professores da Universidade de Santiago de Compostela, quem figerom a seleçom dos materiais revisando toda a obra criativa e filológica de Carvalho”. Também comentou a estrutura do conteúdo: “há um bloco com a sua linha de vida, conformato por 6 paineis cronológicos com a sua linha de vida, que fai um paralelismo da sua vida física, intelectual e com a interaçom política e social do seu tempo, outro painel está focado no Carvalho filólogo e divulgador, outro dedicado à sua obra, mais um dedicado aos seus espaços vitais -com citas alusivas a Ferrol, Lugo e Compostela principalmente-, um outro painel exclusivo sobre o Carvalho reintegracionista, e finalmente um painel final intitulado “Carvalho, o intelectual honesto”, onde se descreve a sua participaçom na vida cultural, social e política do seu tempo.
Valentín García, Secretario Xeral de Política Lingüística, fechou as intervençons agradecendo a atitude da AGAL “por chegar a pontos de encontro e de entendemento para poder levar a cabo umha mui rica programaçom no ámbito deste convénio”. E acrescentou que “Por primeira vez na história a exposiçom de Carvalho vai estar presente fora da Galiza, em concreto em Portugal, dentro do ámbito da lusofonia”. E ainda, quixo reiterar a qualidade e interesse do material didático: “É um esforço tremendo, as unidades didáticas desenhadas pola AGAL, e a sua disponibilidade em formato digital, que se quadra neste momento som mais necessários que nunca para o professorado.” Ademais, rematou sinalando a importancia de Carvalho “nom só como autor das nossas letras, mas também estruturando-as, estabelecendo o cánone da nossa literatura.” Ainda, Valentín García considera que esta homenagem serve para achegar a figura de Carvalho a “ao público geral e também nos Centros de Estudos Galegos em mais de trinta cinco universidades de todo o mundo, aos centros galegos de todo o mundo, etc. que a partir de agora terám mais perto a Carvalho, às Letras Galegas e à língua galega”.
A conferência finalizou com umha única pergunta, formulada por um jornalista de El Correo Gallego, que consultou se “compartem a demanda de que a homenagem a Carvalho Calero tenha continuidade no 2021?”
Sobre esta questom Eduardo Maragoto comentou que os argumentos que que já manifestou publicamente pondo sobre a mesa as dificuldades do ensino para difundir e popularizar o homenageado, e acrescenta que a “extensom da homenagem a 2021 seria um gesto de apoio ao mundo cultural”. E até remarcou que “Carvalho Calero nom é um autor qualquer, os debates e os efeitos das suas propostas ainda se prolongam na atualidade, por isso ainda precisa mais calma e mais sossego para ser debatido.”
Finalmente, Anxo Lorenzo, Director Xeral de Políticas Culturais da Xunta da Galiza respondendo à pergunta comentou que: “os argumentos do presidente da AGAL som bastante claros e nesse sentido estamos vendo muitíssimos projetos culturais que se estám prolongando para o 2021”. E rematou declarando que “na minha opiniom, nom se estranharia nada que a RAG decidisse prolongar o ano Carvalho”.”
Tiago Alves Costa: “Espero que este livro seja acima de tudo uma proposta de revolução”
Entrevista de Daniel Amarelo a Tiago Alves Costa no Portal Galego da Língua:
“(…) – Portal Galego da Língua (PGL): Ao longo de todo o livro [Žižek vai ao ginásio] parece que a forma ganha a batalha contra o conteúdo. Lemos e importamo-nos mais com como se sente e como se passam as cousas do que com o que se sente e o que se passa. Achas que nestes tempos de desmaterialização – do trabalho, dos relacionamentos, até do corpo – a poesia vai sair prejudicada ou fortalecida? Qual o papel da poesia na nossa contemporaneidade?
– Tiago Alves Costa (TAC): A poesia será sempre um meio de revigorar uma época, seja ela qual for. Neste momento e mais que nunca a poesia é uma urgência. Sob o limiar da falência das palavras, neste espetáculo diário de humilhação, expostos aos olhares dos outros à procura da melhor pose, a poesia é uma linha de fuga contra o delírio dos nossos dias. Ainda sem distinguir se somos personagens ou pessoas – nós somos os protagonistas, dizem os lemas publicitários – a poesia surge como um elemento transfigurador deste tempo narcísico, onde o Eu se assume numa clara posição de centralidade não dando espaço ao “outro”, aos outros, à diferença, ao estranho; daí surgem também os discursos xenófobos, que aliás, já pendem sob as nossas cabeças.
– PGL: Qualquer leitora deste livro terá reparado, no fim, em que é até certo ponto uma obra meta-literária, que brinca com muito humor com o próprio papel do poeta, o seu lugar no mundo, o seu habitus. Que relação tens com o poema? Como surgiram estes aqui presentes, que conformam o Žižek?
– TAC: Tenho uma relação com o poema que vai do desejo à rejeição. A maioria das vezes não nos damos bem, ou, talvez, façamos de conta que não nos conhecemos, como se fossemos duas pessoas que se cruzam na rua e se olham, conheço-te de algum lado. Eu fico a olhar para ele, ele fica a olhar para mim, há uma tentativa de aproximação, imaginamos que qualquer coisa de singular poderá acontecer, e, de repente, afastamo-nos. Os poemas de Žižek vai ao ginásio seguem um fio condutor de Mecanismo de Emergência, são fruto da investigação que tenho desenvolvido nos últimos cinco anos e que se traduziram nestes dois livros que a Através Editora teve a enorme coragem de publicar; é um processo que passa por escavar na própria imprevisibilidade das coisas, no quotidiano, nos fenómenos comuns, farejando a vida numa tentativa de demolir-me a mim mesmo e revolucionar silenciosamente o meu modo de ver o mundo. (…)
– PGL: Aquilo que se impõe à (imagem de) liberdade parece percorrer sibilinamente o corpo deste livro-sistema nervoso. Qual é o fundamento político último desta tua obra?
– TAC: Gosto muito dessa tua definição de livro-sistema-nervoso. Quanto a esta questão, a Agustina Bessa-Luís tinha uma frase que me tem acompanhado ultimamente: Um país fabricado em miséria, é um país condenado à política. A poesia é uma forma de expressão cultural, sendo perfeitamente concebível o uso de uma estética poética para traduzir um conjunto de inquietudes políticas que invariavelmente marcam a minha obra. Espero que este livro seja acima de tudo uma proposta de revolução, ou até mesmo um último reduto de liberdade.
– PGL: Afirma-se no prólogo, após citar um dos poemas mais brilhantes do livro, que “as palavras contêm tudo: a denúncia e a citação, o relato e as suas feridas”. Escreve-se contra a linguagem, através da linguagem ou apesar da linguagem?
– TAC: Escreve-se sobretudo contra as amarras da linguagem. A própria leitura de poesia pode convocar um deliberado mal-entendido ou potenciar um conflito na linguagem ou mesmo ações que estourem com a domesticação da palavra que vive ao serviço do poder, seja ele qual for. Pensar a poesia também é mudar de posição relativamente à própria linguagem, ou como diria Gaston Bachelard, não olhar sempre da mesma maneira para as palavras; apesar da linguagem.”
Víctor Freixanes: “Carvalho Calero é a crónica do galeguismo do século XX”
Entrevista de Laura Ramos Cuba a Víctor Freixanes no Portal Galego da Língua:
“(…) – Portal Galego da Língua (PGL): Carvalho Calero acabou de ser escolhido como figura homenageada para as Letras Galegas de 2020. Esta era uma reivindacação contínua de diversos movimentos sociais que, anos depois, é satisfeita. Como avalias esta resolução por parte da Academia?
– Víctor Freixanes (VF): Há tempo que a Academia é ciente de que a figura de Carvalho Calero não podia ser adiada nem marginalizada. Não deixa de ser uma injustiça histórica que não se reconheça o compromisso, o trabalho e a vida que este homem dedicou à cultura, à literatura, à língua galega… Mesmo com obras como a História da Literatura ou como a sua própria significação como primeiro catedrático de Língua e Literatura Galega na USC em 1972. Foi professor de muitos de nós, a mim leccionou-me Língua e Literatura Galegas… É certo que havia uma história detrás de desencontros, digamos assim, entre uns setores da Academia e o próprio Carvalho Calero e as suas posições arredor da língua na última etapa da sua vida. Eu acho que a nova sensibilidade da Academia está em que isso é um capítulo que forma parte da história e da pluralidade democrática dum país. E, portanto, o currículo e a memória histórica de Carvalho Calero não a vamos discutir. Havia que encará-lo com clareza, com transparência, com naturalidade e, também, aproveitando, não o oculto, que esse ano se cumprem 110 anos do seu nascimento e 30 desde a sua morte. São esses números redondos que dão pé a dedicar-lhe o ano a Carvalho Calero, que ademais também coincide com a reclamação que fizemos já ao Concelho de Ferrol para que restaurem a sua casa, de quem já vimos boa disposição. É uma oportunidade, era algo que até eu tinha que assumir. (…)
– PGL: Que destaca da sua figura e da sua obra? Quer a nível individual quer como presidente da Academia, como vai ser abordado o ideário linguístico de Carvalho?
– VF: Bem, vamos ver… A Academia tem dous momentos, além doutro tipo de atividades como são o Portal das Palabras ou a Primavera das Letras, que está pensado para escolas de primária a iniciativa dos professores. Destes dous momentos um é a celebração do Dia das Letras, com a intervenção formal dos académicos ao redor da figura de Carvalho. Então escolheremos três académicos que abordem a figura de Carvalho Calero desde diferentes perspetivas. E depois, em segundo lugar, haverá um simpósio académico onde haverá distintas vozes sobre a sua figura e onde todas as vozes que tenham algo que dizer, podam dizê-lo. Se têm que estar três dias, serão três dias, mas todo o mundo com uma posição documentada e consistente, terá espaço para poder dizê-lo com a madurez que permite hoje uma sociedade, incluso uma sociedade galego-falante, que pode abordar estes temas com uma tranquilidade, documentação e conhecimentos que não existiam há trinta anos.
Então isso também vai permitir que a figura de Carvalho Calero seja abordada dessa perspetiva, mas não é a única perspetiva de Carvalho. E isso também é importante. A Academia não aborda Carvaho Calero pelo tema da proposta ortográfica, senão que homenageia a sua figura histórica. Carvalho Calero é, de forma semelhante a António Fráguas, a crónica do galeguismo do século XX. Carvalho Calero viveu desde o período pré-Guerra Civil e República, porque é um homem muito comprometido com a República, o galeguismo do momento, o Seminário de Estudos Galegos e o Partido Galeguista… participa inclusive com Lois Tobio na redação do anteprojeto do Estatuto de Autonomia que promove o Seminário… Quer dizer, há uma série de atividades objetivas de Carvalho. E depois, na guerra, ele é uma vítima da repressão, com todas as consequências. É uma situação muito grave que eu penso que o afetou emocional e psicologicamente, afetaria a qualquer pessoa.
Depois, é um homem do que chamaríamos o exílio interior. Pratica um bocado -como aconteceu ao próprio Antonio Fraguas e Fernández del Riego– a clandestinidade. Ele viveu exercendo de professor às escondidas para manter a sua família. Foi uma situação muito dura. Teve a sorte de ser acolhido por António Fernández no [instituto] Fingoi, e aí está atuando já o grupo Galaxia, os que foram os fundadores de Galaxia. E ele não pode exercer como professor e é contratado como gerente! Ali chegaram também para serem professores pessoas como Ferrín ou o próprio Bernardino Graña. E nesse momento começa a trabalhar com Fernández del Riego –porque eram amigos íntimos– na História da Literatura Galega Contemporánea. E nesse livro de correspondência entre os dous é impressionante ver como trabalham, com que constância, com que método, com que teimosia… É um retrato dos dous, como procuram os livros, como os vão pedir… Claro, porque agora tudo está na Internet e há umas bibliotecas muito boas, mas daquela não havia nada. Encontrar um original de Proezas de Galicia de Fernández Neira ou encontrar uns documentos do que podia ser o galego patriótico da guerra contra os franceses, ou os primeiros textos em língua galega dos Precursores… Aí também estava Penzol, que estava comprando muito livro e dotando o que depois seria a partir de 1963 a biblioteca da Associação Penzol, e todos estavam aí puxando e construindo…
Ou seja, sou consciente de que Carvalho era o historiador da literatura e o gramático, porque foi a quem lhe encarregaram a Gramática do Galego Comum, de Galáxia, porque antes não havia nada, era uma seleção. E com esse material, Carvalho é quem nos dá aulas a nós na faculdade. (…)”
Teresa Moure: “Sempre digo que não tenho vocação de linguista”
Entrevista de Valentim Fagim a Teresa Moure no Portal Galego da Língua:
“(…) – Portal Galego da Língua (PGL): No prólogo do livro [Linguística eco-], da autoria de Moreno Cabrera, ele começa a indicar que a autora está comprometida com a defesa da diversidade linguística sem esta inclinação afetar a fotografia da realidade que mostra. Foi uma dificuldade transitar por essa aparente corda frouxa?
– Teresa Moure (TM): Sempre digo que não tenho vocação de linguista. Em absoluto. Foram uma série de circunstâncias curiosas e o acaso que puxaram de mim para estudar filologia. Depois, já cometido o pecado, só ficava a hipótese de me afastar da literatura: estava convicta de que queria escrever e, portanto, convinha extremar a cautela com a dissecção literária e dirigi os meus passos para a linguística geral. Nesse contexto, um bocadinho de rebeldia como ingrediente psicológico, um contexto nacional construído sobre a ferida e sobre a negação de nós e o clima na faculdade nos ’90, mais abertamente político do que o atual, tornaram-me em ativista. Não tenho que balançar-me na corda bamba; as tensões fazem parte de nós, mas sou mais ativista do que fotógrafa da realidade, seguindo a imagem de Juan Carlos Moreno Cabrera.
Tenho a fortuna, porém, de que no momento atual só seja possível fazer uma fotografia digna de ser considerada realista mostrando a crua realidade que o ativismo denuncia: padecemos uma devastadora perda da diversidade linguística e cultural. Hoje é aceite o cálculo que prognosticava Michael Krauss em 1992: para o fim do século XXI, 90% das línguas da humanidade terão desaparecido. Às vezes, no âmbito dos estudos de género, indico que não sou feminista como consequência de ter nascido mulher; quero acreditar que seria igualmente feminista encapsulada em qualquer outro tipo de corpo porque para mim se trata dum assunto ético. Da mesma maneira, não sou ativista ecológica e ecolinguística movida pelo único interesse de defender a minha língua (o qual, aliás, seria perfeitamente legítimo). Acho que todas as línguas são património cultural da humanidade e a sua perda faz com que o mundo seja um lugar menos criativo e interessante; um lugar que corre o risco de ser morada do pensamento único. As pessoas que são falantes de línguas não ameaçadas também devem comprometer-se com a defesa da diversidade; é urgente que o façam.
– PGL: No livro desafias a pessoa leitora para tomar consciência da seu desempenho em geografia linguística. Somos assim tão eurocêntricas?
– TM: Acho que somos absolutamente eurocêntricas. Decidimos, por exemplo, estudar as línguas fortes dos estados próximos (inglês, francês, alemão ou italiano). Embora haja ascensões e descidas como resultado de modas, poucas vezes escolhemos línguas doutras áreas geográficas. Nas aulas peço ao estudantado para documentar as unidades ou fenómenos linguísticos que estuda em línguas não europeias porque, ao estudarmos línguas, tendemos a dar por universais os fonemas oclusivos, o género feminino ou os adjetivos qualificativos porque existem, precisamente, nas línguas europeias. Nisso não nos comportamos de maneira diferente do colonizador castelhano ou português do século XVI que, na versão erudita dos missionários, procurava as categorias do latim nas línguas aborígenes que aprendia com aquele esquisito objetivo de traduzir a Bíblia e fazer realidade o verdadeiro objetivo do imperialismo: colonizar mentalmente os povos ocupados. O corpus de dados da linguística geral ainda hoje não é ótimo. E se os fenómenos que consideramos universais só existissem nas línguas da Europa? A ideia de que o tempo é tripartito, por exemplo, materializado em passado, presente e futuro, à vista dos dados reais é bastante eurocêntrica, visto que nas famílias linguísticas não indo-europeias o tempo tem diferentes eixos ou mesmo é circular. Porém, esse suposto expande-se por via linguística e acaba assomando na filosofia ou na construção de hipóteses científicas; em lugares onde não era esperável.
Em geral, somos absolutamente eurocêntricas: temos referências claras para cidades, comidas ou símbolos culturais europeus e só numa ínfima medida para os doutras latitudes. Aliás, à medida que a globalização avança, incorporamos o outro sob a envoltura do “exótico”: viagens de turismo ao Japão, fajitas mexicanas ou pirâmides do Egito. Mas o exótico tem um ar burguês de distopia e discronia; não implica uma condição de igualdade entre os diversos espaços. Acho que continuamos temendo o outro. Doutra maneira não se explicaria que nos programas de história da arte ou de filosofia não apareçam as formas artísticas do Magrebe ou do Vietname, nem se formulem as grandes perguntas doutras civilizações, nem sejam citados pensador@s pret@s ou que escrevam em suaíli. Por acaso só interessam as catedrais ou as pinacotecas da Europa? Por acaso só o povo alemão e a Grécia clássica pensaram? Porque até poderia ser que também, como insinua com ironia Hamid Dabashi, os não europeus pensem. (…)”
Xose Manuel Sánchez Rei: “Cada vez é maior a proximidade com o espanhol das falas galegas”
Entrevista a Xosé Manuel Sánchez Rei no Portal Galego da Língua:
“(…) – Portal Galego da Língua (PGL): Na área linguística, és especialista nos pronomes átonos. Em que direção estão a mudar as falas galegas?
– Xosé Manuel Sánchez Rei (XMSR): Bem, é certo dediquei uma parte das minhas investigações aos pronomes pessoais átonos, mas também me tenho ocupado dos demonstrativos, de questões de sintaxe, da linguagem literária e da variação linguística, neste último âmbito com uma monografia que foi dada a lume por Laiovento há um tempo. Em todos estes anos, a minha sensação à volta dos caminhos que enveredam as falas galegas é que cada vez é maior a proximidade com o espanhol, quando menos em determinadas esferas da reflexão gramatical (fonética, sintaxe, etc.) e em certos ambientes geossociais, como os citadinos. Em confronto, ao mesmo tempo, continua a subsistir um tipo de galego elementarmente oral, popular, vinculado aos falares de gente idosa e ao mundo rural, em que (junto a fenómenos de perigosa hibridação com o espanhol) ainda se podem achar os traços idiossincráticos do domínio galego-português. Mas, infelizmente, esses falares galaicos, que fonética e sintaticamente mantêm as tais essências, não contam com qualquer prestígio social e são normalmente preteridos.
– PGL: Recentemente o presidente da AGAL, Eduardo Maragoto, e o teu colega Freixeiro Mato conferenciaram sobre binormativismo na tua faculdade. Qual a tua opinião ao respeito?
– XMSR: Com efeito, aconteceu há uns meses. Pareceu-me uma atividade muito interessante, até porque surgiu das inquietações do alunado sobre esses particulares e foi organizada por um grupo de estudantes muito sensíveis ao universo das línguas e em particular à galego-portuguesa. Ainda não tive tempo para refletir à vontade nestes temas, mas, inicialmente, a minha impressão do binormativismo é positiva e concorda com as principais ideias expostas pelos dois conferencistas. Com independência da ortografia escolhida, a presentemente oficial na Galiza ou a internacional, achamo-nos numa época em que todas as pessoas que queremos viver em galego devemos poder achar caminhos de confluência que nos permitam avançarmos nesse desejo e na normalização dele. Por outra parte, o mundo conhece casos em que uma mesma língua é escrita de modos diferentes e, nestes meios, a nossa não seria uma exceção. (…)”
Susana Sánchez Arins: “Estou orgulhosa de que a Através já não seja o espaço único que nos resta às autoras reintegracionistas”
Entrevista a Susana Sánchez Arins no Portal Galego da Língua:
“(…) – Portal Galego da Língua (PGL): Parece teres certa predileção pela combinatória de géneros, como já vimos com o seique. Tu contas e eu conto é um livro que contém poesia e narrativa. Umas vezes parece que os poemas estão escritos para os contos e outras que é ao invés. Podes contar-nos um bocado sobre o processo criativo e a decisão de unires num mesmo texto diferentes géneros?
– Susana Sánchez Arins (SA): Alguns dos poemas, como o de “política assistencial”, nasceram da estória que só depois decidi narrar em prosa, e pensei que deviam acompanhar-se, partilhar espaço, assim como mostra de respeito pola ideia primeira; depois nasceram estórias que eu não sabia se ficavam transparentes e pensei em colocar-lhe o poema para marcar aquilo que me interessava, ou oferecer outra visão do mesmo tema, ou mesmo contradizer o discurso dalguma personagem ou narradora. Em realidade, a medida que compunha o livro, vi que umas e outros pediam o acompanhamento: a estória, da síntese poética, o poema, duma estória que o estendesse.
E a cousa é sempre assim, não há vontade inicial minha de fazer cousas raras, juro, mas no processo de escrita encerelho-me, os textos tiram, eu puxo (“não, não, quero escrever normal, deixai-me, deixai-me!”), e sempre acabam por ganhar-me a partida.
– PGL: Formalmente o teu livro tem esse teu tom humorístico, ameno e mesmo oral. Porém, do ponto de vista do conteúdo impera a violência, que se manifesta de muitos jeitos (simbólica, institucional, machista…). É este um livro sobre a dor?
– SA: Não penso que seja um livro sobre a dor, mas sobre a vida. Eu pretendia escrever sobre o quotidiano, e foi no quotidiano que a violência entrou, entra. E quase sempre é essa a violência que fica sem narrar, porque as que interessam são as grandes, as maiúsculas, as públicas. E são estas privadas as que esquecemos porque não são contadas.
Acho que há muito humor nos textos, e que esse humor convive com situações de violência, mais ou menos brutal, mais ou menos subtil. Acho que assim são as nossas vidas. É com certeza o humor, junto com a tenrura (amor, diriam outras), o que faz que possamos erguer-nos, e continuarmos a ser pessoas, por cima dessa violência que sofremos ou presenciamos dia a dia. Isso é o que queria contar. (…)
– PGL: Tenho entendido que tens outros projetos em processamento… Podias-nos adiantar alguma coisa?
– SA: Ai! Devo-me à discrição! Mas posso dizer que estou muito contente porque os dois mais imediatos tenho-os comprometidos com editoras que não são a Através. Quer dizer, estou orgulhosa de que a Através já não seja o espaço único que nos resta às autoras reintegracionistas. Que haja outras editoras que publiquem obras nossas sem comentar nada, por desnecessário, dos nossos nh. Sem sugerir a possibilidade, sequer, de mudar a ortografia. Encontro isso prova dum caminho, pode que lento, mas inexorável, para o binormativismo. E orgulha-me fazer parte.”
Afonso Becerra de Becerreá: “A dramaturgia é a engenharia do teatro e da dança”
Entrevista de Teresa Moure a Afonso Becerra no Portal Galego da Língua:
“(…) – Portal Galego da Língua (PGL): O teu é um ensaio feroz, no sentido de que conduz quem ler por um território pouco conhecido, mesmo para o público habitual do teatro. Poderias definir o teatro pós-dramático?
– Afonso Becerra (AB): É aquele que afirma o próprio jogo teatral, na sua materialidade e concretização, sem submeter a ação a ideias previas, ao império da palavra ou à representação de uma história.
No teatro pós-dramático a palavra também pode jogar no palco, mas não o faz hierarquizando o resto dos elementos da composição cénica.
O teatro pós-dramático faz primar a sensorialidade, o movimento, o corpo, os objetos cénicos, a luz, os sons, sem estabelecer hierarquias entre os elementos compositivos e sem privilegiar o eixo diacrónico por cima do sincrónico.
– PGL: Tendemos a ver o teatro como um espetáculo, onde alguém (a companhia, quem escreveu a obra ou quem a dirige) decide absolutamente o que encena. Porém não há teatro sem público. Que significa, nesse contexto, Confio-te o meu corpo? Dito noutras palavras, que é que a atriz/o ator aguarda desse coletivo a quem convoca?
– AB: O primeiro que aguarda uma atriz/ator é que a espetadora e o espetador também atuem com eles participando no jogo que o espetáculo propõe. Por tanto, aguardam gerar uma atenção e uma empatia, para entrar num diálogo extraordinário, ou seja, fora do ordinário. Um diálogo empático que nos conecte e nos interpele no que diz respeito a algum aspeto determinado.
Confio-te o meu corpo vem a situar o corpo no centro do discurso, porque é no corpo onde tem lugar a vida e o jogo teatral. As coisas mais importantes sentimo-las no corpo: a paixão, o medo, a vergonha, a alegria… E quando falo do corpo, também o faço a partir de um sentido metafórico, no teatro e na dança, que na perspetiva pós-dramática som a mesma coisa, o corpo e a fisicalidade equivalem à forma dinâmica. O que importa nas artes do palco é o corpo das palavras, o corpo da voz, o corpo dos objetos cénicos, o corpo do movimento… a sua fisicalidade, a sua musculatura e textura. O mais importante sempre acontece no corpo. (…)”